“O
que conto hoje é uma historia de amor. Uma historia estranha, mas de amor, sim.
Eu me apaixonei pela Delírio no exato momento em que soube da existência dela e
me surpreendi com a quantidade de coisas que ela e minha Candice tem em comum.
O amor que ela desperta em mim tem muitas fontes, o mito é uma delas, mas não
sei dizer se a principal... Hoje, com certa permissão, sequestro Delirio. Hoje
viro dois mundos de cabeça para baixo, só porque sou ruim, só porque sou
teimosa e só porque desejo alguém que entenda minha loucura.”
Brazil, São Paulo. Em
algum lugar obscuro do centro.
Sinceramente?
Ela já estava cansada de procurar, embora sua curiosidade se tornasse cada vez
maior. Há dias Delírio caçava a coisa que produzia aquele cheiro. Um cheiro
amadeirado e cítrico, um cheiro muito parecido com o que ela mesma sentia
enquanto jogava, mas algo levemente mais adocicado, como essas coisas que são
adoçadas artificialmente. Encontrará o cheiro por acaso, enquanto caminhava no
meio da noite e seguindo-o, chegando a uma mulher abraçada com uma arvore que balbuciava
coisas sobre o fim do mundo. Desde então, toda vez que sente o cheiro, encontra
uma cena mais ou menos parecida. Toda vez encontra a consequência, mas não a
causa.
Naquele
momento, enquanto encarava a noite fria, Delírio se perguntava o que diabos
tinha um poder tão parecido com o seu, mas ainda sim, tão diferente. De alguma
forma sabia que aquele era não era de sua espécie, mas não sabia que espécie era.
E por isso mantinha os olhos, vermelhos e orientais, muito bem atentos.
Acreditava que a criatura estava por perto, precisava que estivesse por perto.
Ironicamente, começava a crer que a curiosidade iria lhe enlouquecer.
Um
sopro de brisa gélida trouxe o cheiro até a Succubus que se levantou
rapidamente. Estava mais forte do que das outras vezes, mais... Fresco. A brisa
parou, fazendo a garota chutar o banco, frustrada. Mas, como se algo atendesse
seus pedidos, o vento trouxe o odor novamente e dessa vez, sem perder tempo,
ela o seguiu... Não foi necessário caminhar por muito tempo, a fonte da coisa
não estava de lado tão longe e ela se perguntava como tudo, num raio de cinco
kilometros, não conseguia sentir aquilo. Se perguntava, inclusive, como ela própria
tinha sido capaz de ignorar aquela aura desconhecida de tamanho poder... Talvez
sua resposta estivesse ali. Ela não se lembrava de ter sentido algo parecido com
aquilo antes, mesmo no centro da cidade, onde tantas coisas passam para lá e
para cá.
Delírio
estava parada do lado de fora do pequeno edifício. Parecia estar abandonado,
com a tinta amarelada descascando e trepadeiras invadindo algumas das janelas
quebradas. A porta parecia trancada, embora não muito sólida. Plantas cresciam
por todo o pequeno jardim, formando uma mini floresta por trás dos portões de
ferro negro. Aquela era mais uma das lindas casas antigas, parte da historia do
centro que a cidade adorava ignorar, simplesmente porque existiam casas
daquelas aos montes, e que o não virava abrigo para sem-teto, ficava
abandonada, ou... Habitada por algum ser estranho.
Pelas
janelas da frente, parcialmente inteiras, não era possível ver nada. Mas se
prestasse atenção por um momento bem ao longe existia um som. Algo muito
parecido com um choro; o cheiro estava extremamente forte, como se a fonte dele
estivesse bem em baixo do nariz da mulher... Delírio empurrou o portão devagar,
sentindo-o abrir sem muito esforço, aquilo era um indicio claro que estava
sendo utilizado bastante nos últimos tempos e tal fato não condizia com o
estado do restante do imóvel. Fechou o portão atrás de si e venceu o pequeno
espaço até os três degraus que elevavam a entrada da casa. Ainda que a porta
parecesse trancada, sua teimosia lhe levou a girar a maçaneta e ver, com
surpresa, a madeira abrindo-se lentamente.
Lá
dentro tudo era escuro. No andar de baixo não havia sequer uma única luz, mas
tinha um cheiro especial. Um cheiro que ela conhecia muito bem. Conseguia
destingir, mesmo na completa escuridão, manchas de sangue por todos os cômodos.
Marcas de mãos nas paredes, coisas escritas com o sangue em latim e outras línguas
mortas. O cheiro do sangue se misturava ao seu próprio, e ao terceiro,
levemente adocicado que estava a ponto que lhe tirar o juízo.
No
alto da escada havia luz e sons que ecoavam pelas paredes antigas. Subiu os
degraus de madeira com extremo cuidado, sem provocar um único som, prendendo os
cabelos roxos rapidamente, num coque meio bagunçado, apenas para estar pronta
para o que quer que houvesse lá em cima. O andar de cima era um corredor de tamanho
médio que terminava em outra grande escada de madeira. Dos dois lados haviam
portas fechadas, pintadas de negro recentemente. A luz do local provinha de
tochas antigas, fincadas na parede. Coisas que assim como a tinta negra das
portas, não eram naturais do lugar.
Delírio
avistou algo. Havia cerca de um metro separando a succubus daquela cascata de
cabelos ruivos, a dona do cheiro doce, que não se moveu um único centímetro. A
ruiva em questão estava para em frente da única porta aberta do corredor, a
cabeça inclinada e apoiada no batente, os pés descalçados no tapete velho, que
um dia fora dourado. Tinha o corpo, pequeno e delicado, envolvido num vestido
branco de mangas longas. Parecia completamente inofensiva, se não tivesse com a
mão direita apoiada sobre uma katana afiadíssima, uma extensão da palidez de
sua pele e suas vestes.
Por
um rápido momento, a succubus encarou o próprio corpo. Era dois ou três palmos
mais alta que a ruiva, mas tinha a mesma pele alva, embora o corpo fosse consideravelmente
mais provocante. Usava coturno, uma calça jeans simples, camiseta preta e
jaqueta de couro. Sua arma atualmente? Um canivete automático que, ela sabia,
fazia muito estrago. Passado o momento de avaliar os riscos e os possíveis resultados
de uma luta, a oriental tomou sua decisão.
Com
a faca muito firme na mão esquerda, Delírio rompeu a distancia entre os dois
corpos sem causar um único ruído, parando atrás da ruiva que sequer se moveu. –
O que é você? – Isso foi tudo que a maior conseguiu pronunciar enquanto olhava
para dentro do quarto, para a cena real e para as realidades que Charlotte
produzia. No cômodo havia uma mulher e dois homens. A mulher estava num canto,
deitada em posição fetal enquanto chorava. O maior dos homens estava em pé, as
mãos machucadas encostadas na parede como se estivesse sendo preso por uma
força sobrenatural. O ultimo estava estirado no meio do quarto, as pernas e
braços apertos, a respiração ofegante enquanto fitava, com os olhos vidrados, o
teto.
A
aproximação não foi uma surpresa, Charlotte sabia que aquela outra pessoa estava
ali, sempre soubera. Sentia algo diferente desde o momento em que Delírio abriu
o portão, algo que não conseguia explicar. – Charlotte. – Murmurou, como se a
pergunta fosse a respeito de seu nome e não sua espécie. A ruiva fechou os
dedos em volta da katana com mais força e nesse momento sentiu um arrepio frio
percorrendo seu corpo, a partir do ponto exato da onde a lamina da oriental
tocava seu pescoço. – Por favor, eu tenho trabalho a fazer. – Murmurou,
revirando os olhos. Segurou o pulso da outra, sentindo por um curto momento a
lamina se apertar contra sua pele.
Delirio
tinha muitas perguntas a fazer, mas ela sentia o poder correndo nas veias
daquela garota. Sentia como não tinha sentido antes, como não conseguia
explicar. E do mesmo jeito que não podia explicar o poder, também não podia
explicar o motivo que lhe levou a afastar a faca daquela pele clara. Mas
Charlotte sorriu de lado com a ação e caminhou para dentro do quarto. Graciosa
como uma bailarina, ela caminhou para perto do rapaz estirado no chão e lhe
encarou por um longo momento. – Ultima chance. Onde vocês enfiaram minha
Liesel? – Sussurrou. O homem se retorceu, mas seus pulsos e tornozelos não se
afastaram do chão nem por um centímetro. – Eu não sei, já disse que não sei.
Meu trabalho era só entregar ela. – Respondeu em desespero, cheirando o choro
lhe atrapalhar a fala. Cansada, a mutante respirou fundo, negou com a cabeça.
Não demorou. Com um único golpe rápido e forte o suficiente, Charlotte separou
a cabeça do corpo. O sangue jorrou, sujando a mulher no canto do cômodo, que
não se moveu apesar disso.
Só
então Delirium voltou a caminhar para perto da porta. A oriental agora
conseguia ver as diversas manchas de sangue naquele vestido branco, conseguia ver
os olhos de cores desiguais que brilhavam insanamente e o sorriso, o misto mais
delicioso de crueldade e doçura que ela já tinha presenciado. Quando seus
corpos estavam bem perto, Charlotte respirou fundo. – Você cheira bem. –
Constatou, dando um passo para frente de forma a obrigar Delírio a dar dois
para trás. A mutante fechou a porta atrás de si com cuidado. – Em que posso
ajudar? Quem é você? – Suas perguntas eram simples, mas a verdade é que a maior
não tinha as respostas.
Os
olhos rubros encaravam os cabelos do mesmo tom. Sua curiosidade só aumentou. –
Pode me chamar de Delírio. – Respondeu, ignorando as perguntas em sua mente.
Charlotte colocou o peso do corpo sobre uma das pernas, apoiando-se no batente
da porta. – As pessoas me chamam de Delirium em missões. Tipo uma versão mais
em latim de como eu posso te chamar. Mas se fizéssemos isso, seria confuso.
Então pode me chamar de Charlotte mesmo. – As palavras eram lentas e
controladas. Havia pouco sentido no que falava, embora alguma conexão com a
realidade. Delirio ouviu, mais do que viu, alguém chamando por “Charlie” e a
ruiva sorriu, negando com a cabeça. – Não, nem pense nisso. Só ela pode me
chamar assim. – Murmurou, enquanto virava o rosto para o outro lado do
corredor, o lugar de onde tinha a voz.
A
Succubus acompanhou o olhar da menor e respirou fundo. Precisou se concentrar
um pouco para ver a figura no fim do corredor, uma copia perfeita de Charlotte,
exceto por duas coisas. O vestido da copia estava perfeitamente limpo e seus
olhos eram iguais, dois poços calmos de um profundo azul... Algo produziu um ruído
no cômodo de cima e Delirio perdeu a concentração. E com isso, a imagem da
copia se foi, deixando a maior extremamente confusa. – O que você é? – Insistiu
na pergunta, embora Charlotte já estivesse novamente dentro do cômodo, de
costas para a oriental. – O que você vê? – No lugar de uma resposta, ganhou
mais uma pergunta.
Não
havia decidido ainda se iria ou não entrar em luta com aquele corpo de
bailarina, mas por enquanto, não parecia existir uma ameaça real. A oriental
respirou fundo e seguiu Charlotte para dentro do quarto, descrevendo a cena que
via, a realidade da mulher no canto e do rapaz na parede... Não demorou um
minuto para que a cena mudasse. Logo Delírio estava descrevendo as ilusões nas
quais as pessoas ali estavam presas. – Como você faz isso? Mutante algum
consegue ver o que eu faço, nem telepatas. – Murmurou, encarando a oriental
muito de perto, tão de perto que era possível para a maior sentir a respiração
quente da outra criatura.
A
cena oscilava entre a realidade e o mundo que Charlotte criou. Aquilo estava
dando dor de cabeça na maior, que segurou a garota pela mão e lhe puxou
gentilmente para fora do cômodo, fechando mais uma vez a porta atrás de
ambas... Aquele não era o comportamento normal de nenhuma das duas. Tanto a
dona das madeixas roxas, quanto aquele de olhos desiguais tinham a mania de
bater primeiro e perguntar depois, mas as duvidas uma sobre a outra eram tão
grandes que causavam uma mudança. Algo conectava as duas, mas ela queria saber
o que.
Firmou-se
a cena real. O corpo de Charlotte a sua frente, a iluminação proveniente do
fogo e Delirio finalmente se sentiu segura para falar. – Então é isso? Você é
uma mutante? – A ruiva riu e deu os ombros, afirmando com a cabeça. – O que
mais eu poderia ser? Uma maquina do governo? Bom, teoricamente eu sou isso, mas
não do governo, governo. Uma maquina do instituto, talvez. – Seus pensamentos
foram além, como costumavam ir. Charlie encarava o teto, pensando a respeito de
ser uma maquina.
Por
mais que soubesse a espécie de garota, isso não tornava as coisas muito mais
simples para Delírio, na verdade. Um longo momento se passou com as duas ali.
Enquanto a oriental pensava, em silencio. Charlotte falava com sua irmã sobre
algo bastante serio que só aumentava a confusão na mente da succubus. Afinal,
as vezes via a irmã, as vezes ela simplesmente não estava ali.
Demorou,
mas chegou-se a uma conclusão. – Você é como eu, então.. Uma versão de laboratório
minha, provavelmente. – Murmurou a dona dos olhos rubros, sem se preocupar se
isso poderia chatear a outra. – Eu não fui feita em laboratório, a maioria das
mutações é natural. Você precisa parar de assistir tanta TV, moça. – A voz era
tão calma, tão suave que fez Delírio olhar melhor para o corpo a sua frente.
Notou-se então aqueles olhos, os profundos olhos azuis, calmos e gentis. –
Charlie, você é muito mal educada com as visitas.. Eu sou Candice, mas pode me
chamar de Candy. – Murmurou a mutante, caminhando lentamente para a escada,
onde se sentou.
Talvez
por falta de escolha, talvez por pura curiosidade, Delirio seguiu a outra
garota e se sentou ao seu lado. – Vamos por partes, estou me perdendo nessa
loucura toda. – Murmurou, rindo ironicamente da própria constatação. Candice
não riu, estava ocupada limpando o sangue da lamina da katana com a beira do
vestido. – Você se chama Candice, tem os olhos azuis e Charlotte... – Sua frase
foi interrompida pela figura de Charlotte parada, em pé atrás de Candice, com
os olhos multi coloridos – Eu sou a irmã dela, a gêmea malvada, segundo alguns.
E nós somos mutantes, sim. – Murmurou, piscando o olho verde para a outra. –
Acho que entendi, mais ou menos. – Delírio ainda se esforçava com tudo aquilo.
Candy
levantou a cabeça, encarando a outra garota e sorrindo como uma criança doce. –
Você é uma das únicas pessoas que não ignora a Charlie. Legal da sua parte...
Ela é meio teimosa e tem cara de má, eu sei. Mas é uma flor, não machuca as
pessoas de propósito, só está cuidando de mim. – Explicou, encarando o lugar
onde, momentos antes, Delírio tinha visto a ‘gêmea má’. Aquilo finalmente
esclareceu a mente da succubus que chegou a se irritar por não ver tal coisa
antes. Logicamente Candice, ou Charlotte, tanto faz... Logicamente, a garota
ruiva era uma mutante com algum tipo de poder que envolvia delírios e esse
poder era forte ao ponto de envolver a própria garota nisso, de forma permanente.
E Delírio só conseguia ver o mesmo que a garota ruiva quando se concentrava,
mas provavelmente isso mudaria se passasse tempo suficiente perto dela.
Algo
muito adormecido se moveu dentro da succubus. Talvez fosse seu coração, talvez
os sentimentos que há tanto tinha esquecido. Não sabia dizer o motivo, mas não
tinha vontade de socar a pequena na sua frente. Nem mesmo naquele momento,
quando Candice desfez o coque da maior e se ajoelhou atrás dela, penteando seus
cabelos com os dedos. – O que você é, moça Delírio? – Perguntou. E a voz de
Candy era doce, cheia de uma curiosidade tão inocente e genuína que faria as
pessoas duvidaram das marcas de sangue em suas vestes. – Alguém com um poder
especial, como o seu. Mas não um mutante. – Explicou da melhor forma possível,
simplesmente porque dizer ‘a succubus mais foda do planeta’ não parecia ser a
resposta certa para alguém como Candy.
Inocentemente,
a ruiva encostou o queixo no ombro da maior. – Okay, senhora não-mutante. Como
é seu nome? E nem vem, eu sei que Delírio é seu apelido. – Delírio riu. E como
poderia não faze-lo? Aquilo tudo era ironia demais, e talvez até loucura
demais. Estava surpresa e surpresa por se sentir surpresa. Maravilhada com
todas as sensações que a pequena mutante lhe trazia. – Você pode me chamar de
Akira, pequena Candice. Mas é um segredo, ok? – Falou o primeiro nome que lhe
veio a mente, porque ninguém antes havia se dado ao trabalho de questionar a
forma como lhe chamavam, nem mesmo ela própria.
Afirmando
rapidamente com a cabeça, Candice se levantou e deixou a katana no corredor.
Desceu três degraus, até estar de frente para a succubus que agora era
reconhecida, por Candy, como Akira. – Quer comer algo? Charlie ainda vai
demorar com eles e eu estou faminta. – Argumentou enquanto balançava o corpo
lentamente.
Delirio
ainda tinha muitas perguntas a fazer, muito a descobrir sobre a adolescente e
por isso aceitou o convite. Saiu da casa para a noite fria em companhia de uma
ruiva completamente louca, descalça e usando um sobretudo negro que era quase
maior que ela. Saiu para a noite fria do centro de são Paulo, pela primeira vez
sinceramente feliz por ter uma companhia. Companhia para qual finalidade ainda
não tinha descoberto, mas uma companhia, sem duvidas agradável.