- Delirium? – Ele sussurrou lentamente, quando finalmente a encontrou no meio da floresta, sob as arvores de copas densas. Feixes da palidez da lua cheia mostravam o caminho, permitindo que se caminhasse sem quebrar o pé, mas não que se enxergasse muito além.
Ela sorriu de lado, de costas para ele. Era assim que a chamavam nas missões, não? Era assim que a chamavam quando ninguém podia chamar seu nome, quando não era seguro para as pessoas a sua volta saberem quem estava no controle, quando ninguém deveria saber que a professora era louca, que a líder da missão era uma assassina.
Charlotte não se virou, apenas continuou o que estava fazendo. Com a cabeça levemente inclinada de lado, os cabelos rubros caindo numa bonita cascata, ela continuava entalhando a pequena cruz na arvore. Ouviu, mais do que sentia, ele se aproximando lentamente, os galhos e folhas secas se quebrando sob o peso do corpo musculoso. Ela poderia mata-lo em aproximadamente trinta segundos, se ele não conseguisse lhe segurar...
O coração dele batia tão rápido que jurava ecoar por toda a floresta, mas não podia desistir agora. Parou de caminhar. Cinco, talvez seis passos estavam entre ele e aquele corpo pálido, vestido de branco e manchado de vermelho. – Candice... – Sua resposta foi o silencio. O corpo não se moveu, aquele não era seu nome, afinal. – Olha, Candy. Nós precisamos conversar. Você não pode sumir por cinco dias. Eu estava preocupado! Perguntei para todos os professores e ninguém sabia onde estava, e quando fui atrás do Chase para pedir um grupo de buscas, ele me disse para te deixar em paz. Disse que eu nunca seria capaz de te entender, de te aceitar. O que está acontecendo, Candy? – Ele abaixou o rosto, fitando os próprios pés. O coração batia tão rápido, os olhos estavam cheios de lágrimas que com muito custo ele mantinha sob controle. – Eu senti sua falta, meu amor. – Sussurrou lentamente.
Algo se moveu dentro de Charlotte. Algo pequeno, doce e gentil. Uma voz suave que chamou pelo rapaz, uma voz que implorou o nome dele. Mas a voz de Charlotte, dentro de si mesma, era mais forte e o que foi libertado, voltou a trancar-se num lugar muito profundo. A ruiva respirou fundo, mordendo o lábio inferior lentamente. – Sabe, Aaron. – Ela começou, muito devagar. A voz era indiferente, mas bela, aveludada. Havia certa sensualidade mortal escondida sob camadas de gelo. – Você precisa entender algumas coisas sobre mim. Aliás, algumas coisas sobre nós. – A ultima palavra fez Aaron levantar a cabeça no exato momento em que Charlotte virou o corpo e só então o rapaz entendeu que aquela não era sua namorada.
Seus pés estavam descalçados, meio machucados pela floresta, com lama colorindo a pele branca até a altura dos tornozelos. O vestido branco de mangas longas estava tingido de vermelho-escuro, manchado de sangue seco na altura dos joelhos e abdômen. Mas o tom de vermelho nos braços, próximo aos pulsos, era mais vivo. Um vermelho forte onde o tecido estava molhado, grudado a pele. A faca girava habilidosamente entre os dedos, como se estivesse nascido ali, como se aquele fosse seu lugar natural.
Mas foi no rosto, aquele belo rosto que um dia tanto amou, que Aaron encontrou o que mais temia. Os lábios mostravam um sorriso lindo, tão lindo que seria possível se apaixonar apenas lhe olhando, mas esse sorriso era frio. Em seu rosto havia sangue, como há no chocolate no rosto de crianças pequenas. Os olhos, normalmente de um azul claro e celeste, estavam diferentes. Desiguais! Um de seus olhos exibia um verde profundo e outro era azul, de um azul tempestuoso. Mas ambos eram perigosos, mostravam uma fúria contida.
Todos os sinais de existência de Candice estavam lá. A aliança brilhando no dedo anelar da mão direita e sob ela, um anel mais fino com uma pedra roxa. O colar com pingente de cupcake estava ali, no lugar que ele tinha colocado uma mês antes. As unhas longas pintadas de pink, com pequenas flores brancas como decoração... Todos os sinais estavam lá, mas Candice não.
Charlotte deu um passo lento para frente e embora todos os sentidos de Aaron lhe mandassem correr, ele não se moveu. – Candice. – Ele sussurrou numa esperança vã de ver os olhos dela voltando ao normal. – Gêmea errada. – Charlie deu outro passo para frente. – Sinceramente, nessa altura do campeonato, eu achei que você já tinha notado que era eu. – Sussurrou, revirando os olhos, claramente entediada.
Depois de um longo momento, Aaron finalmente reuniu toda a coragem necessária e deu um passo para frente, puxando a mão direita da garota gentilmente. – Isso é dela, não seu. – Murmurou, sentindo novamente os olhos cheios de lágrimas. Onde estaria Candice?
Charlotte puxou a mão, livrando-se do contato dele brutamente. – Você não entende. – Por um momento, a voz dela pareceu doce e quase frágil. Por um momento, se parecia com a voz de Candice. Ela se virou, voltando para perto da arvore, passando os dedos lentamente por cada cruz que tinha entalhado ali. A verdade era que ela também não entendia e isso fazia com que se sentisse mal e estranha, mas Aaron entendia. Depois de alguns momentos no qual o silencio pareceu se estender por toda floresta, Aaron finalmente entendeu.
Compreendeu que a mente da Candice era uma bagunça, tanto quanto a de Charlotte. Compreendeu que eram uma só, mas que nenhuma das ‘duas’ tinha o conhecimento disso. Precisava entender como aquilo funcionava, precisava fazer algo, mas antes... Antes tinha que trazer sua amada de volta.
Assim, ele caminhou para perto dela e respirou fundo. – Candice. – Chamou novamente, e o corpo a sua frente apenas encostou a testa na madeira áspera, suspirando. – Eu sei que você está me ouvindo, Candy. – Murmurou, passando os braços ao redor da cintura da garota, colando seu tórax as costas dele. A primeira reação de Charlotte seria enfiar a faca no pulso do garoto, mas ela não o fez. Uma batalha era travada dentro de si mesma. Candice queria o controle, queria voltar e estar com Aaron. Charlotte precisava continuar ali, precisava terminar o que começou.
Um ruído lento encheu o lugar quando a faca foi cravada na arvore. O poder da ruiva estava saindo do controle, lutando para manter uma linha aceitável de realidade entre as duas. Pela primeira vez, e provavelmente pela ultima, Aaron ficou preso na mesma ilusão que sua namorada estava desde o nascimento, pela primeira vez ele viu e entendeu como era o mundo de Candice.
“ Candice estava com a cabeça encostada na arvore, os olhos azuis como um lago calmo. Os braços de Aaron ao redor de sua cintura, a sensação do corpo protetor dele contra o seu. Alguns metros a sua frente havia uma figura exatamente igual a Candice, exceto pelos olhos. Olhos multicoloridos e tempestuosos. Aquela era Charlotte e essa mesma Charlotte deu um passo para frente, colocando a mão sobre a de Candy, que estava apoiada na arvore. – Irmã. Minha pequena e doce irmã. Você precisa vir comigo, Candy. Eu preciso terminar isso, você sabe que preciso. Eles machucaram a todos nós, irmã. Eu preciso fazer isso. – Sua voz era tão doce quando falava com a irmã. Muito diferente da louca que tinha falado com Aaron.
Os olhos de Charlotte encontraram com o do rapaz e ela pareceu rosnar, exibindo os dentes pontudos e artificialmente afiados. – Preciso ficar com ele, Charlie. Eu não posso ir contigo, irmã. Já faz cinco dias que nós saímos. Eu preciso ficar com ele, não posso deixa-lo sozinho. Você sabe que ele corre perigo. – A mão livre de Candice passava sobre as mãos ao amado enquanto falava. Aaron observava a cena, pasmo com a complexidade do poder da ruiva, pasmo com as dimensões que aquilo tomava e verdadeiramente tocado por finalmente poder entender o quanto aquilo afetava a vida da instrutora.
Charlie esticou a mão, tirando delicadamente uma mexa do cabelo vermelho que cairá sobre os olhos azuis daquela que era doce. – Eu sei, minha rainha, eu sei. Mas só falta um, Candice. Só um e eu terei terminado, só mais um. Você sabe que eu preciso fazer isso e sabe que, de certa forma, isso ajudará a manter esse aí seguro. – Murmurou, dirigindo um olhar gélido ao rapaz que ainda abraçava aquela que amava. E foi essa, foi sua amada que afirmou com a cabeça. Meio convencida, meio derrotada.
Candice soltou as mãos de Aaron de sua cintura e se virou lentamente, ficando de frente para o rapaz. Passou os braços em volta do pescoço dele, sorrindo como um anjo. Sorrindo como ele se lembrava, como da primeira vez em que viu ela. – Meu amor... Dois dias, está bem? Só mais dois dias e eu estarei de volte. Encontre-me no penhasco, no nascer do sol do terceiro dia. Eu vou estar te esperando, prometo. – Murmurou e antes que ele pudesse lhe responder, ela o beijou. Candice beijou o rapaz com todo seu amor. E Aaron, imerso na ilusão tanto quanto sua namorada, retribuiu o beijo com lágrimas gélidas deslizando sobre as bochechas quentes. Seus lábios se separam lentamente e Candice se afastou do amado pra chegar perto da irmã. Beijou o rosto de Charlie demoradamente e se afastou, sumindo na escuridão da floresta. ”
Aaron era incapaz de dizer se tudo aquilo aconteceu de verdade ou se era apenas uma ilusão. O fato era que Charlotte estava ali, parada a sua frente. Os dedos estavam firmes ao redor do cabo da faca, os olhos disformes que encaravam o rapaz eram frios e assassinos. – Agradeça a tudo que conhece por ela te amar tanto. Essa é a única coisa que te mantém vivo. – Sussurrou, tirando a faca da madeira e virando-se. Da mesma forma que Candice, na ilusão, a ruiva caminhou lentamente e sumiu na escuridão da floresta.
E o rapaz? Ele foi incapaz de continuar, incapaz de sair dali. Passou os dedos lentamente por cada cruz talhada na arvore. Então se encostou à mesma, deslizando o corpo até estar sentado no chão, abraçando os joelhos e deitando a cabeça sobre os braços cruzados. Assim, no silencio da floresta, beijado pela luz imparcial da lua, ficou pensando em Candice. Em Candice, em Charlotte, em todas as coisas que viu. Passou a noite pensando... Em Delirium.