10 de dezembro de 2016

Hello, my old friend

Um  corpo no escuro, delicadamente colocado sobre a poltrona mais confortável da grande sala de estar. A lareira estava morrendo, as chamas crepitavam suavemente, o calor já não era o suficiente para fazer com que o ambiente estivesse confortável. Ruby era o corpo, os olhos fixos na grande janela de vidro a sua frente, imóvel alem dos movimentos muitos suaves causados por sua respiração lenta. Vestida de negro, os longos cabelos vermelhos caiam em cascata sobre os ombros, os profundos olhos verdes perdiam-se na noite escura. Lá fora chovia.
A porta do comodo se abriu devagar, um rangido muito suave encheu o ar. O clima parecia se tornar ainda mais frio conforme a figura vestida de negro caminhava para perto de Ruby, que não se moveu um único centímetro.
- Eu esperei muito por você. - Ruby finalmente se moveu, sua voz calma e doce não condizia com a ferocidade da chuva que era reflexo de seu espirito. 
A figura de negro se sentou na poltrona próxima aquela que 
Ruby habitava e a ruiva se virou para fitar sua tao esperada visita. Era uma mulher num longo vestido negro, de mangas longas; tinha a pele extremamente pálida, o corpo magro e pequeno, cabelos escuros como carvão que lhe caiam livres sobre os ombros, olhos negros e carinhosos.
 - Sei que tem me esperado, talvez ate me desejado. Mas eu vim apenas lhe visitar, ainda não é chegada a hora levar você. - A voz da mulher era mais suave do que Ruby esperava, era quase carinhosa.
- Eu não sabia que você podia fazer esse tipo de visitas. - 
- Posso, embora normalmente não faça. Mas estou sempre tão próxima de você, há tantos anos, que achei que essa vista não lhe faria mal. - 
- De fato, não me sinto pior agora do que me senti o restante de minha vida, embora sua proximidade pudesse ser capaz disso, tenho certeza. - 
- Pessoas perto da morte costumam se agarrar com mais vontade a vida. - 
Por um momento houve um longo silencio, Ruby pensava sobre o que estava acontecendo. Não parecia real, mas ela era uma bruxa sabia o bastante para saber que a maioria das coisas não parece real.
- Você me parece tão solitária. - A figura rompeu o silencio e sua constatação fez a ruiva rir por m momento. 
- A morte pode ser muito solitária, mas passei a vida toda assim. Não faz sentido para mim estar rodeada de pessoas no momento em que abandonar este mundo, se vim a ele e nele sobrevivi sozinha. - 
- Você me chamava aqui com tanta vontade, com tanta força, que não resisti a vir mesmo que não fosse a hora. Por que me queria tanto? -
- Achei que já tivesse notado. Estou solitária. - 
O silencio se instalou novamente, mas dessa vez era a figura de negro que ponderava os dizeres da bruxa. 
- Eu só queria com quem conversar, estou perdendo a pouca sanidade que me resta. Ninguém fala comigo. - Ruby explicou, finalmente se movendo. Afastou os cabelos rubros do rosto e respirou profundamente, mordendo o lábio inferior. 
- Com tantas pessoas circulando para lá e para cá. Como pode ninguém falar com você? - 
- Ninguém fala comigo sobre você. Todos agem como se nada estivesse acontecendo, dizem que você não virá até mim antes que eu seja bem idosa, que a vida será muita amiga por muitos e muitos anos. Eles não são capazes de aceitar... Eu só queria que aceitassem. - Ruby desabafou e suspirou, deixando transparecer todo o cansaço que existia em seu coração enquanto fechava os olhos.
- Você é realmente jovem para ir comigo. - 
- Mas você sempre esteve comigo, há anos. E você não vai desistir de me levar só porque sou jovem. Na verdade, eu quero ir, aceitei isso como sendo parte da minha historia, só queria que eles fizessem o mesmo. - A ruiva abriu os olhos e mordeu o lábio inferior devagar. Queria ir embora. 
- Sempre é difícil aceitar que aqueles que amamos um dia vão partir. - 
- Eles vão me enlouquecer agindo dessa forma. Eu não posso falar disso com ninguém. É um fato que vou morrer, eu estou morrendo. Só quero paz e que aceitem isso, que estejam comigo nesses tempos finais, que possamos falar disso normalmente. A morte vem para todos, eu só sou muito bela e lhe encantei, agora ela me quer enquanto sou jovem. - Ruby riu nervosamente com o próprio comentário e voltou os olhos para a mulher de preto.
Para sua surpresa a mulher estava rindo também. O som era um pouco rouco, como se não fizesse isso há muito tempo. Devagar, a mulher de negro se inclinou para frente e segurou seu queixo, encarando o fundo daqueles profundos olhos verdes. 
- Tem razão. Você é linda, e encantou a morte. Infelizmente isso é perigoso, agora eu te quero apenas para mim... - 
Os lábios da mulher tocaram lentamente a bochecha da ruiva. Era um toque gélido, mas suave e confortável. Ruby fechou os olhos e suspirou, esperando por algo que ainda não tinha certeza do que era. 
- Eu vou voltar e te levar comigo. Fare isso muito em breve, mas não hoje. Divirta-se até lá e continue linda para mim. - A voz da mulher era tão calma que não parecia que aquilo significava tudo que de fato significava. 
Os dedos pálidos da mulher deslizaram pelas mechas vermelhas num carinho lento e suave. Ruby sorria sob o toque, quieta e em paz, mas ainda respirando. 
Tão suavemente quanto chegou, a mulher se levantou e caminhou para fora da sala em passos silenciosos. Lançou um ultimo olhar para Ruby enquanto encostava a porta do comodo e teve a feliz supresa de notar que a ruiva dormia profunda e tranquilamente. Um sono de paz e sem sonhos.

25 de maio de 2016

Light of my life

Ele era minha luz... Era não, ele é, e espero que continue sendo por muito tempo. É fato que não sei como as coisas vão ser daqui para frente, não sei os caminhos que teremos que percorrer, mas anseio para que façamos isso juntos.
Tenho medo, verdade seja dita. Porque não sou como deveria, sei disso. Há algo extremamente errado dentro de mim, e com essa coisa, bilhões de outras pequenas coisas erradas e por isso, tenho medo. Temo que a grande escuridão dentro de mim o afaste, tenho medo que todas essas coisas erradas nunca possam ser concertadas, medo que ele se canse desse meu jeito torto.
Sinto que não existem, e provavelmente nunca chegará a existir, palavras suficiente para descrever o que sinto. Ele não sabe, mas meu mundo é dolorosamente mais gelado quando estamos afastados e agora... Agora que eu vi a luz, é difícil ficar na escuridão. Ele não sabe, mas... Ele é lindo, por dentro e por fora. Quando ele sorri, o mundo inteiro se ilumina e seus olhos. Ah, seus olhos! Lindos e expressivos olhos, que mostram uma alma tão pura e doce.
Ele é romântico como eu nunca vi alguém sendo e sinto falta das mãos dele sobre meu corpo, de seus lábios junto a minha pele, de sua voz suave me fazendo promessas nas quais acredito tão facilmente. Parece que mesmo que eu tente, não encontro meios suficientes de explicar o quanto ele me faz bem, o quanto a saudade que sinto é grande. Ah, se ele soubesse o quanto o amo...
Mas ele não vê, e eu não o culpo por isso. Antes de conhecê-lo eu estava sozinha no escuro, e mesmo com tantas outras pessoas a minha volta, nada era capaz de me alcançar. Só ele foi. Ele foi capaz de fazer tudo que ninguém antes conseguiu. Ele me abraçou e todas as vozes se calaram, todos os fantasmas se afastaram. Em seus braços, pela primeira vez, eu fechei os olhos em paz e tudo que eu queria era que isso acontecesse novamente.

Sei, dentro de mim, que voltará, porque ele é minha luz...

(https://www.vagalume.com.br/disney/enrolados-vejo-enfim-a-luz-brilhar.html)

20 de maio de 2016

Delirios, em uma realidade paralela, talvez.

“O que conto hoje é uma historia de amor. Uma historia estranha, mas de amor, sim. Eu me apaixonei pela Delírio no exato momento em que soube da existência dela e me surpreendi com a quantidade de coisas que ela e minha Candice tem em comum. O amor que ela desperta em mim tem muitas fontes, o mito é uma delas, mas não sei dizer se a principal... Hoje, com certa permissão, sequestro Delirio. Hoje viro dois mundos de cabeça para baixo, só porque sou ruim, só porque sou teimosa e só porque desejo alguém que entenda minha loucura.”

Brazil, São Paulo. Em algum lugar obscuro do centro.

Sinceramente? Ela já estava cansada de procurar, embora sua curiosidade se tornasse cada vez maior. Há dias Delírio caçava a coisa que produzia aquele cheiro. Um cheiro amadeirado e cítrico, um cheiro muito parecido com o que ela mesma sentia enquanto jogava, mas algo levemente mais adocicado, como essas coisas que são adoçadas artificialmente. Encontrará o cheiro por acaso, enquanto caminhava no meio da noite e seguindo-o, chegando a uma mulher abraçada com uma arvore que balbuciava coisas sobre o fim do mundo. Desde então, toda vez que sente o cheiro, encontra uma cena mais ou menos parecida. Toda vez encontra a consequência, mas não a causa.
Naquele momento, enquanto encarava a noite fria, Delírio se perguntava o que diabos tinha um poder tão parecido com o seu, mas ainda sim, tão diferente. De alguma forma sabia que aquele era não era de sua espécie, mas não sabia que espécie era. E por isso mantinha os olhos, vermelhos e orientais, muito bem atentos. Acreditava que a criatura estava por perto, precisava que estivesse por perto. Ironicamente, começava a crer que a curiosidade iria lhe enlouquecer.
Um sopro de brisa gélida trouxe o cheiro até a Succubus que se levantou rapidamente. Estava mais forte do que das outras vezes, mais... Fresco. A brisa parou, fazendo a garota chutar o banco, frustrada. Mas, como se algo atendesse seus pedidos, o vento trouxe o odor novamente e dessa vez, sem perder tempo, ela o seguiu... Não foi necessário caminhar por muito tempo, a fonte da coisa não estava de lado tão longe e ela se perguntava como tudo, num raio de cinco kilometros, não conseguia sentir aquilo. Se perguntava, inclusive, como ela própria tinha sido capaz de ignorar aquela aura desconhecida de tamanho poder... Talvez sua resposta estivesse ali. Ela não se lembrava de ter sentido algo parecido com aquilo antes, mesmo no centro da cidade, onde tantas coisas passam para lá e para cá.
Delírio estava parada do lado de fora do pequeno edifício. Parecia estar abandonado, com a tinta amarelada descascando e trepadeiras invadindo algumas das janelas quebradas. A porta parecia trancada, embora não muito sólida. Plantas cresciam por todo o pequeno jardim, formando uma mini floresta por trás dos portões de ferro negro. Aquela era mais uma das lindas casas antigas, parte da historia do centro que a cidade adorava ignorar, simplesmente porque existiam casas daquelas aos montes, e que o não virava abrigo para sem-teto, ficava abandonada, ou... Habitada por algum ser estranho.
Pelas janelas da frente, parcialmente inteiras, não era possível ver nada. Mas se prestasse atenção por um momento bem ao longe existia um som. Algo muito parecido com um choro; o cheiro estava extremamente forte, como se a fonte dele estivesse bem em baixo do nariz da mulher... Delírio empurrou o portão devagar, sentindo-o abrir sem muito esforço, aquilo era um indicio claro que estava sendo utilizado bastante nos últimos tempos e tal fato não condizia com o estado do restante do imóvel. Fechou o portão atrás de si e venceu o pequeno espaço até os três degraus que elevavam a entrada da casa. Ainda que a porta parecesse trancada, sua teimosia lhe levou a girar a maçaneta e ver, com surpresa, a madeira abrindo-se lentamente.
Lá dentro tudo era escuro. No andar de baixo não havia sequer uma única luz, mas tinha um cheiro especial. Um cheiro que ela conhecia muito bem. Conseguia destingir, mesmo na completa escuridão, manchas de sangue por todos os cômodos. Marcas de mãos nas paredes, coisas escritas com o sangue em latim e outras línguas mortas. O cheiro do sangue se misturava ao seu próprio, e ao terceiro, levemente adocicado que estava a ponto que lhe tirar o juízo.
No alto da escada havia luz e sons que ecoavam pelas paredes antigas. Subiu os degraus de madeira com extremo cuidado, sem provocar um único som, prendendo os cabelos roxos rapidamente, num coque meio bagunçado, apenas para estar pronta para o que quer que houvesse lá em cima. O andar de cima era um corredor de tamanho médio que terminava em outra grande escada de madeira. Dos dois lados haviam portas fechadas, pintadas de negro recentemente. A luz do local provinha de tochas antigas, fincadas na parede. Coisas que assim como a tinta negra das portas, não eram naturais do lugar.
Delírio avistou algo. Havia cerca de um metro separando a succubus daquela cascata de cabelos ruivos, a dona do cheiro doce, que não se moveu um único centímetro. A ruiva em questão estava para em frente da única porta aberta do corredor, a cabeça inclinada e apoiada no batente, os pés descalçados no tapete velho, que um dia fora dourado. Tinha o corpo, pequeno e delicado, envolvido num vestido branco de mangas longas. Parecia completamente inofensiva, se não tivesse com a mão direita apoiada sobre uma katana afiadíssima, uma extensão da palidez de sua pele e suas vestes.
Por um rápido momento, a succubus encarou o próprio corpo. Era dois ou três palmos mais alta que a ruiva, mas tinha a mesma pele alva, embora o corpo fosse consideravelmente mais provocante. Usava coturno, uma calça jeans simples, camiseta preta e jaqueta de couro. Sua arma atualmente? Um canivete automático que, ela sabia, fazia muito estrago. Passado o momento de avaliar os riscos e os possíveis resultados de uma luta, a oriental tomou sua decisão.
Com a faca muito firme na mão esquerda, Delírio rompeu a distancia entre os dois corpos sem causar um único ruído, parando atrás da ruiva que sequer se moveu. – O que é você? – Isso foi tudo que a maior conseguiu pronunciar enquanto olhava para dentro do quarto, para a cena real e para as realidades que Charlotte produzia. No cômodo havia uma mulher e dois homens. A mulher estava num canto, deitada em posição fetal enquanto chorava. O maior dos homens estava em pé, as mãos machucadas encostadas na parede como se estivesse sendo preso por uma força sobrenatural. O ultimo estava estirado no meio do quarto, as pernas e braços apertos, a respiração ofegante enquanto fitava, com os olhos vidrados, o teto.
A aproximação não foi uma surpresa, Charlotte sabia que aquela outra pessoa estava ali, sempre soubera. Sentia algo diferente desde o momento em que Delírio abriu o portão, algo que não conseguia explicar. – Charlotte. – Murmurou, como se a pergunta fosse a respeito de seu nome e não sua espécie. A ruiva fechou os dedos em volta da katana com mais força e nesse momento sentiu um arrepio frio percorrendo seu corpo, a partir do ponto exato da onde a lamina da oriental tocava seu pescoço. – Por favor, eu tenho trabalho a fazer. – Murmurou, revirando os olhos. Segurou o pulso da outra, sentindo por um curto momento a lamina se apertar contra sua pele.
Delirio tinha muitas perguntas a fazer, mas ela sentia o poder correndo nas veias daquela garota. Sentia como não tinha sentido antes, como não conseguia explicar. E do mesmo jeito que não podia explicar o poder, também não podia explicar o motivo que lhe levou a afastar a faca daquela pele clara. Mas Charlotte sorriu de lado com a ação e caminhou para dentro do quarto. Graciosa como uma bailarina, ela caminhou para perto do rapaz estirado no chão e lhe encarou por um longo momento. – Ultima chance. Onde vocês enfiaram minha Liesel? – Sussurrou. O homem se retorceu, mas seus pulsos e tornozelos não se afastaram do chão nem por um centímetro. – Eu não sei, já disse que não sei. Meu trabalho era só entregar ela. – Respondeu em desespero, cheirando o choro lhe atrapalhar a fala. Cansada, a mutante respirou fundo, negou com a cabeça. Não demorou. Com um único golpe rápido e forte o suficiente, Charlotte separou a cabeça do corpo. O sangue jorrou, sujando a mulher no canto do cômodo, que não se moveu apesar disso.
Só então Delirium voltou a caminhar para perto da porta. A oriental agora conseguia ver as diversas manchas de sangue naquele vestido branco, conseguia ver os olhos de cores desiguais que brilhavam insanamente e o sorriso, o misto mais delicioso de crueldade e doçura que ela já tinha presenciado. Quando seus corpos estavam bem perto, Charlotte respirou fundo. – Você cheira bem. – Constatou, dando um passo para frente de forma a obrigar Delírio a dar dois para trás. A mutante fechou a porta atrás de si com cuidado. – Em que posso ajudar? Quem é você? – Suas perguntas eram simples, mas a verdade é que a maior não tinha as respostas.
Os olhos rubros encaravam os cabelos do mesmo tom. Sua curiosidade só aumentou. – Pode me chamar de Delírio. – Respondeu, ignorando as perguntas em sua mente. Charlotte colocou o peso do corpo sobre uma das pernas, apoiando-se no batente da porta. – As pessoas me chamam de Delirium em missões. Tipo uma versão mais em latim de como eu posso te chamar. Mas se fizéssemos isso, seria confuso. Então pode me chamar de Charlotte mesmo. – As palavras eram lentas e controladas. Havia pouco sentido no que falava, embora alguma conexão com a realidade. Delirio ouviu, mais do que viu, alguém chamando por “Charlie” e a ruiva sorriu, negando com a cabeça. – Não, nem pense nisso. Só ela pode me chamar assim. – Murmurou, enquanto virava o rosto para o outro lado do corredor, o lugar de onde tinha a voz.
A Succubus acompanhou o olhar da menor e respirou fundo. Precisou se concentrar um pouco para ver a figura no fim do corredor, uma copia perfeita de Charlotte, exceto por duas coisas. O vestido da copia estava perfeitamente limpo e seus olhos eram iguais, dois poços calmos de um profundo azul... Algo produziu um ruído no cômodo de cima e Delirio perdeu a concentração. E com isso, a imagem da copia se foi, deixando a maior extremamente confusa. – O que você é? – Insistiu na pergunta, embora Charlotte já estivesse novamente dentro do cômodo, de costas para a oriental. – O que você vê? – No lugar de uma resposta, ganhou mais uma pergunta.
Não havia decidido ainda se iria ou não entrar em luta com aquele corpo de bailarina, mas por enquanto, não parecia existir uma ameaça real. A oriental respirou fundo e seguiu Charlotte para dentro do quarto, descrevendo a cena que via, a realidade da mulher no canto e do rapaz na parede... Não demorou um minuto para que a cena mudasse. Logo Delírio estava descrevendo as ilusões nas quais as pessoas ali estavam presas. – Como você faz isso? Mutante algum consegue ver o que eu faço, nem telepatas. – Murmurou, encarando a oriental muito de perto, tão de perto que era possível para a maior sentir a respiração quente da outra criatura.
A cena oscilava entre a realidade e o mundo que Charlotte criou. Aquilo estava dando dor de cabeça na maior, que segurou a garota pela mão e lhe puxou gentilmente para fora do cômodo, fechando mais uma vez a porta atrás de ambas... Aquele não era o comportamento normal de nenhuma das duas. Tanto a dona das madeixas roxas, quanto aquele de olhos desiguais tinham a mania de bater primeiro e perguntar depois, mas as duvidas uma sobre a outra eram tão grandes que causavam uma mudança. Algo conectava as duas, mas ela queria saber o que.
Firmou-se a cena real. O corpo de Charlotte a sua frente, a iluminação proveniente do fogo e Delirio finalmente se sentiu segura para falar. – Então é isso? Você é uma mutante? – A ruiva riu e deu os ombros, afirmando com a cabeça. – O que mais eu poderia ser? Uma maquina do governo? Bom, teoricamente eu sou isso, mas não do governo, governo. Uma maquina do instituto, talvez. – Seus pensamentos foram além, como costumavam ir. Charlie encarava o teto, pensando a respeito de ser uma maquina.
Por mais que soubesse a espécie de garota, isso não tornava as coisas muito mais simples para Delírio, na verdade. Um longo momento se passou com as duas ali. Enquanto a oriental pensava, em silencio. Charlotte falava com sua irmã sobre algo bastante serio que só aumentava a confusão na mente da succubus. Afinal, as vezes via a irmã, as vezes ela simplesmente não estava ali.
Demorou, mas chegou-se a uma conclusão. – Você é como eu, então.. Uma versão de laboratório minha, provavelmente. – Murmurou a dona dos olhos rubros, sem se preocupar se isso poderia chatear a outra. – Eu não fui feita em laboratório, a maioria das mutações é natural. Você precisa parar de assistir tanta TV, moça. – A voz era tão calma, tão suave que fez Delírio olhar melhor para o corpo a sua frente. Notou-se então aqueles olhos, os profundos olhos azuis, calmos e gentis. – Charlie, você é muito mal educada com as visitas.. Eu sou Candice, mas pode me chamar de Candy. – Murmurou a mutante, caminhando lentamente para a escada, onde se sentou.
Talvez por falta de escolha, talvez por pura curiosidade, Delirio seguiu a outra garota e se sentou ao seu lado. – Vamos por partes, estou me perdendo nessa loucura toda. – Murmurou, rindo ironicamente da própria constatação. Candice não riu, estava ocupada limpando o sangue da lamina da katana com a beira do vestido. – Você se chama Candice, tem os olhos azuis e Charlotte... – Sua frase foi interrompida pela figura de Charlotte parada, em pé atrás de Candice, com os olhos multi coloridos – Eu sou a irmã dela, a gêmea malvada, segundo alguns. E nós somos mutantes, sim. – Murmurou, piscando o olho verde para a outra. – Acho que entendi, mais ou menos. – Delírio ainda se esforçava com tudo aquilo.
Candy levantou a cabeça, encarando a outra garota e sorrindo como uma criança doce. – Você é uma das únicas pessoas que não ignora a Charlie. Legal da sua parte... Ela é meio teimosa e tem cara de má, eu sei. Mas é uma flor, não machuca as pessoas de propósito, só está cuidando de mim. – Explicou, encarando o lugar onde, momentos antes, Delírio tinha visto a ‘gêmea má’. Aquilo finalmente esclareceu a mente da succubus que chegou a se irritar por não ver tal coisa antes. Logicamente Candice, ou Charlotte, tanto faz... Logicamente, a garota ruiva era uma mutante com algum tipo de poder que envolvia delírios e esse poder era forte ao ponto de envolver a própria garota nisso, de forma permanente. E Delírio só conseguia ver o mesmo que a garota ruiva quando se concentrava, mas provavelmente isso mudaria se passasse tempo suficiente perto dela.
Algo muito adormecido se moveu dentro da succubus. Talvez fosse seu coração, talvez os sentimentos que há tanto tinha esquecido. Não sabia dizer o motivo, mas não tinha vontade de socar a pequena na sua frente. Nem mesmo naquele momento, quando Candice desfez o coque da maior e se ajoelhou atrás dela, penteando seus cabelos com os dedos. – O que você é, moça Delírio? – Perguntou. E a voz de Candy era doce, cheia de uma curiosidade tão inocente e genuína que faria as pessoas duvidaram das marcas de sangue em suas vestes. – Alguém com um poder especial, como o seu. Mas não um mutante. – Explicou da melhor forma possível, simplesmente porque dizer ‘a succubus mais foda do planeta’ não parecia ser a resposta certa para alguém como Candy.
Inocentemente, a ruiva encostou o queixo no ombro da maior. – Okay, senhora não-mutante. Como é seu nome? E nem vem, eu sei que Delírio é seu apelido. – Delírio riu. E como poderia não faze-lo? Aquilo tudo era ironia demais, e talvez até loucura demais. Estava surpresa e surpresa por se sentir surpresa. Maravilhada com todas as sensações que a pequena mutante lhe trazia. – Você pode me chamar de Akira, pequena Candice. Mas é um segredo, ok? – Falou o primeiro nome que lhe veio a mente, porque ninguém antes havia se dado ao trabalho de questionar a forma como lhe chamavam, nem mesmo ela própria.
Afirmando rapidamente com a cabeça, Candice se levantou e deixou a katana no corredor. Desceu três degraus, até estar de frente para a succubus que agora era reconhecida, por Candy, como Akira. – Quer comer algo? Charlie ainda vai demorar com eles e eu estou faminta. – Argumentou enquanto balançava o corpo lentamente.

Delirio ainda tinha muitas perguntas a fazer, muito a descobrir sobre a adolescente e por isso aceitou o convite. Saiu da casa para a noite fria em companhia de uma ruiva completamente louca, descalça e usando um sobretudo negro que era quase maior que ela. Saiu para a noite fria do centro de são Paulo, pela primeira vez sinceramente feliz por ter uma companhia. Companhia para qual finalidade ainda não tinha descoberto, mas uma companhia, sem duvidas agradável. 

18 de maio de 2016

O leão e a boneca

Ele parou na porta de madeira, apoiando a mão sobre a mesma. Respirou fundo, mordendo o lábio inferior, por um momento incerto se deveria continuar. Dentro do cômodo, sentada sobre o banco a frente da penteadeira, ela deslizava a escova muito delicadamente nos cabelos rubros. A cama de dossel estava perfeitamente arrumada, assim como o restante do quarto. O grande guarda-roupa de madeira escura, assim como o resto dos moveis, brilhava suavemente, lustrado a perfeição. A pouca luz do quarto era proveniente da vela rosa clara acessa próximo ao espelho, do lado contrario do belíssimo cravo vermelho, solitário em seu vaso de cristal. As cortinas de veludo vermelho das janelas, assim como as do dossel, estavam abertas. Mas pouco se via do lado de fora da residência, naquela além de poucas estrelas. Poucas e estranhas estrelas, as únicas testemunhas daquela doce criatura.
A porta se abriu lentamente, sem oferecer resistência às mãos habilidosas que lhe empurravam. Não a fechou, deixando que um quadrado da luz artificial do corredor se formasse até alcançar a parte de baixo da cama. A ruiva não se moveu, continuou escovando os cabelos devagar, mas um sorriso doce brotou em seus lábios. Sorriso que, pelo espelho, ela viu não se espalhar ao rapaz parado na porta.
Ele suspirou ainda indeciso, ainda confuso. – Olá. – Murmurou, encarando o quarto, buscando desviar-se dos olhos verdes que mexiam com sua alma. – Olá. – Ela respondeu devagar, a voz aveludada enchendo o cômodo de maneira uniforme. Os passos lentos foram até ela, o corpo parou a poucos centímetros daquele sentado, mas não se moveu além disso. – Eu... Preciso te contar uma coisa. Deveria ter contado antes, mas não sabia como. Ou talvez simplesmente não quisesse contar, enfim... – Tentou ser rápido e embora ela tivesse acompanhado a sequencia de palavras sem problemas, não o respondeu. Ele suspirou, enfiou as mãos nos bolsos traseiros do jeans. – Tem uma humana em minha vida agora. – Murmurou, fitando os próprios pés.
Por um longo momento o silencio se fez presente. Ela respirou fundo, esforçando-se para fazer o ar sair devagar de si. – Alguém de carne e osso? De pele quente? – Sussurrou, vendo pelo espelho ele afirmando com a cabeça. A boneca tocou seu próprio braço muito lentamente. Sentia a pele completamente macia, deliciosa ao toque, mas um toque levemente gélido, algo imutavelmente gélido. – Eu não deixarei de te amar. – Ele ainda não tinha coragem de olhar para ela, e não tinha porque deixar sua criação era doloroso.
A boneca finalmente se levantou, deixando a escova de cabelo sobre o móvel a sua frente. Com os gestos perfeito e graciosos com os quais era acostumada, rompeu a distancia entre os corpos, passando os braços em volta do pescoço dele. – Você vai voltar? – Sussurrou. Ele finalmente tomou coragem, finalmente encarou os olhos verdes e encontrou neles toda a dor que temia, mas afirmou com a cabeça. – Eu nunca vou te deixar. – Prometeu naquele tom que sempre usava com ela, aquele tom que parecia mais distante no preciso momento. – Eu estarei aqui, você sabe disso, meu leão. Estarei aqui porque sou incapaz de deixar de te amar. Estarei aqui porque me movo apenas por esse amor. – Cada palavra foi dita lentamente, no mesmo tom aveludado pelo qual ele se apaixonara.
Em respeito aquela que agora ocupava o coração dele, a boneca depositou um beijo lento na bochecha de seu amado e desejou, silenciosamente, que a humana cuidasse dele, que o fizesse feliz. Afastou-se então, os passos lentos dirigindo-se até a cama, o vestido lilás movendo-se de forma tão doce que o fez suspirar quando, como uma perfeita dama vitoriana, ela se sentou no colchão macio e pousou as mãos sobre os joelhos, lhe encarando.
Por um momento foi apenas isso, apenas o longo silencio e os olhos deles, verde contra azul, a dor da partida contra a aventura do novo amor. – Tranque a porta quando sair. – A boneca sussurrou, inclinando a cabeça para encara-lo de outro ângulo. – Por que? – Ele questionou diante do pedido pela primeira vez lhe feito. – Não há motivos para sair daqui sem você. Mas quero que saia, que viva essa experiência por mim. Sabe que sou incapaz... – A voz dela morreu em seus lábios, a dor se tornou tão real. – Incapaz de amar outro ser além de ti, talvez com exceção daqueles pequenos que me prometeu. – Por um momento, seus olhos brilharam enquanto, com as mãos, mencionava o tamanho daqueles prometidos. – Então tranque e volte quando quiser. Eu estarei aqui, amado leão. – Sussurrou por fim, exibindo um sorriso que misturava partes iguais de dor, amor e esperança.

E seguindo o conselho dela, o rapaz se virou e caminhou até a porta. Pouco antes de fecha-la, lançou um ultimo olhar a sua obra mais amada. – Eu te amo, minha bonequinha. – Sussurrou e ela teve certeza que amava. Ela sempre tivera essa certeza, não existiria sem ela. – Eu te amo, leão. – Respondeu a pequena, vendo o feixe de luz artificial subir e ouvindo, com o coração apertado, a chave sendo girada na fechadura. Os dedos pálidos da criação tocaram o camafeu que ele lhe deu, a promessa que voltaria, o símbolo que a amava mais do que todas as outras. Deitou-se então a boneca e ficou, quieta na escuridão, a espera do regresso daquele que amava. 

3 de abril de 2016

Candice, como um vulcão

Jack empurrou a pesada porta de madeira com força, fazendo-a ranger sob seu ato. Apesar do furacão em forma de mutante que entrava em sua sala, Chace não se moveu um único centímetro. Continuava sentado, os cotovelos apoiados sobre a mesa, o queixo pousado gentilmente sobre os punhos fechados enquanto os lindos olhos azuis examinavam um longo relatório sobre a ultima missão.
Respirou fundo, considerando invadir a mente do homem a sua frente. Estava sem paciência, já tinha muitos problemas para lidar sem os chiliques do docente de tortura e métodos de persuasão. Ainda sim, com uma calma muito fingida, levantou os olhos e encarou o moreno. – Hm? – E não preciso esperar muito. Jack estava vermelho de raiva, o corpo levemente suado e os cabelos negros totalmente bagunçados. Havia bolsas levemente roxas sob seus olhos, marcas do cansaço.
O docente colocou as mãos sobre as mesas e se inclinou para frente. – Você precisa para-la imediatamente, Chace. – Murmurou. O vampiro mordeu o lábio inferior lentamente, se controlando para não colocar Jack para fora aos gritos. – Pelo que acabei de ler, ela salvou sua vida duas vezes... – Sussurrou, encostando-se a cadeira. – Duas vezes... APENAS na semana passada. – Adicionou com certa ironia, sabendo que isso iria mexer com os nervos do rapaz. E estava certo. Jack explodiu numa fúria levemente contida, socando a mesa de carvalho escuro. – ELA ESTÁ ENLOQUECENDO ELES!! ISSO É DESHUMANO, CONTROLE-A! – Gritou e Chace não suportava que qualquer ser, principalmente inferior a sua posição, gritasse com ele.
Levantou-se, apoiando as duas mãos fechadas em punho na mesa e se inclinou frente. – Ela, ao contrario de você, está fazendo um bom trabalho. – Rosnou, endireitando a coluna antes de se afastar da mesa a passos lentos. – Ela tem que obter informações, precisa saber o que eles tem planejado, é o único meio que nós temos para proteger aqueles que vivem conosco e você sabe muito bem disso. – Murmurou enquanto caminhava para o bar de madeira ao fundo da sala.
Cansado e vencido, Jack se sentou na cadeira confortavelmente estofada, afundando-se nela. – Ela os tortura a exaustão, Chace. Faz coisas com eles... Coisas que não posso descrever e quando finalmente acha que conseguiu tirar tudo deles, os deixa completamente loucos. Muitos ali nunca mais vão ser capazes de dizer uma única frase que faça sentido, duvido muito que sequer ainda saibam com certeza quem são. – Argumentou, passando as mãos pelos cabelos negros.
Ele sabia disso, sabia de tudo isso. Mas também sabia de coisas que Jack não era nem capaz de sonhar. Chace se serviu lentamente de uma dose de Whiskey enquanto olhava Jack que era, definitivamente, uma mera sombra do que costumava ser. – Eu sei, meu amigo, eu sei. Mas é exatamente por isso que mantenho ela ali. Precisamos das informações e principalmente, precisamos garantir que eles não voltem ao normal. Eles são monstros, merecem tudo que acontecer com eles, sabe disso. Você quase não sobreviveu a eles. – Acrescentou a ultima frase com cuidado.
Pensou, ao ter ouvido o suspiro longo de Jack que tinha ganho. Viu o rapaz de levantar e caminhar até a porta com passos vagarosos, enquanto estralava os dedos. A verdade é que aquilo era só uma pausa, e não o final. Jack abriu a porta e se virou para encarar Chace. – Você precisa controlar ela. Se um dia ela surtar, estaremos todos mortos, na melhor das hipóteses. – Murmurou e saiu.

Chace se sentou no banco, encarando a bebida em seu copo por um longo momento, até que não pudesse mais ouvir os passos do outro mutante e soubesse, pelo faro avançado, que ele estava bem longe. – Ela não pode ser controlada. Candice, ou Charlie, tanto faz... Ela é uma força da natureza. Não pode ser controlada, não pode ser parada. Mas pode ser influenciada e eu preciso de um jeito de estar perto dela, ela precisa me ver como um herói, ou um vilão... – Sussurrou, tomando em goles rápidos o whiskey, que lhe queimou a garganta agradavelmente. Em passos rápidos, o vampiro saiu da sala em busca daquela dos olhos multicolores. Chace tinha um plano e precisava coloca-lo em ação logo, afinal: Não se pode controlar as forças da natureza, mas pode-se tirar proveito delas. 

6 de março de 2016

Candice, o final.

Havia algumas poucas horas desde que eles brigaram. Aquilo não foi uma briga realmente, mas não sabia direito dizer o que tinha sido. De qualquer forma, precisava de um tempo sozinho, tinha que colocar a mente e as ideias no lugar. Precisa organizar seus sentimentos, saber quais eram e o que faria...
Já era noite quando bateu na porta do quarto dela e esperou, em silencio, por uma resposta que não veio. Sentiu o coração apertado, um sentimento ruim e estranho. Então girou a maçaneta e, para sua surpresa, sentiu a porta abrindo-se sem resistência. Estava destrancada, exibindo um quarto escuro e silencioso que não combinava com Candice. A cama estava arrumada, as janelas fechadas e havia uma rosa. Uma rosa solitária sobre a escrivaninha, o único ponto iluminado no quarto. A rosa que repousava tranquila sob o brilho tênue da luminária ligada.
Fechou a porta e começou a procurar por ela. Correu todos os lugares de convivência comum, bateu na porta de todos aqueles que tinham contato com ela, perguntou a todos que cruzaram seu caminho. A cada resposta negativa, a cada lugar vazio, seu coração se apertava. Não havia mais onde procurar, não havia mais a quem perguntar... Em desespero, passava mentalmente os possíveis lugares em busca daquele que passou despercebido. Falta um sim.
Aaron subiu os lances de escada correndo, sem acreditar, rezando para estar errado. Quando abriu a porta para o telhado, seu coração parou. Ela estava lá! Chovia ali fora, chovia muito. O corpo pequeno estava molhado até os ossos, as roupas coladas ao corpo, os cabelos ruivos grudados ao rosto e pescoço. Chovia tanto que não era possível distinguir as lágrimas das gotas de chuva que disputavam espaço em suas bochechas. Estava frio. O vento não tinha piedade dos corpos, os lábios dela estavam roxos, tremiam suavemente.
Por um momento, ela parou a caminhada que fazia. Encarou a porta aberta, o rosto vermelho e quente dele, a forma como ofegava, o corpo levemente inclinado para frente na busca desesperada de ar. Ela sorriu, como estava acostumada a fazer. Um sorriso que se estendeu sobre seu rosto de maneira estranha, um sorriso dolorosamente triste e se virou novamente. Continuou sua caminhada, ignorou tudo que gritava dentro de si e continuou.
Colocou o primeiro pé no beiral e respirou fundo, subindo ali com a leveza de uma folha levada pelo vento. O coração dele parou ao ver a cena, não podia permitir que isso acontecesse, não podia. Correu para perto dela, ignorando o frio e a chuva, ignorando tudo que não fosse ela. Mas parou, a poucos centímetros dela, parou. Parou no momento em que ela abriu os braços e esticou uma das pernas para o abismo, como se fosse uma ginasta a fazer uma brincadeira. Pousou o pé, antes no ar, no beiral. Se equilibrou ali, os dois pés firmes no pequeno espaço de concreto que mantinha sua alma ainda ligada ao corpo.
Os olhos azuis se voltaram para ele, os amáveis olhos azuis. Um relâmpago cortou o céu e sua luz pálida se espalhou, fazendo os cabelos rubros brilharem intensamente. – Candice. Desça. – Ele implorou, a voz sufocada por tantas coisas, as lágrimas brotando em seus olhos. Lagrimas imperceptíveis, como as dela. Candy, por sua vez, negou suavemente com a cabeça. – Surpreendente e inevitável, meu anjo. – Ela murmurou calmamente. Estava de frente para ele, parecia que iria descer, parecia que a loucura do ato não se tornaria real.

Mas a realidade é uma só, e a realidade dela sempre foi diferente. A realidade dela sempre foi a loucura, loucura que lhe acompanhou na vida e que lhe levou a morte... Candice sorriu, fechou os olhos e abriu os braços. Deixou o corpo cair da trás, acreditando que algo lhe seguraria antes de atingir o chão. Mergulhou, de costas, no abismo. E de lá, Candice nunca saiu. 

25 de fevereiro de 2016

Candice, um acontecimento.

- Delirium? – Ele sussurrou lentamente, quando finalmente a encontrou no meio da floresta, sob as arvores de copas densas. Feixes da palidez da lua cheia mostravam o caminho, permitindo que se caminhasse sem quebrar o pé, mas não que se enxergasse muito além.
Ela sorriu de lado, de costas para ele. Era assim que a chamavam nas missões, não? Era assim que a chamavam quando ninguém podia chamar seu nome, quando não era seguro para as pessoas a sua volta saberem quem estava no controle, quando ninguém deveria saber que a professora era louca, que a líder da missão era uma assassina.
Charlotte não se virou, apenas continuou o que estava fazendo. Com a cabeça levemente inclinada de lado, os cabelos rubros caindo numa bonita cascata, ela continuava entalhando a pequena cruz na arvore. Ouviu, mais do que sentia, ele se aproximando lentamente, os galhos e folhas secas se quebrando sob o peso do corpo musculoso. Ela poderia mata-lo em aproximadamente trinta segundos, se ele não conseguisse lhe segurar...
O coração dele batia tão rápido que jurava ecoar por toda a floresta, mas não podia desistir agora. Parou de caminhar. Cinco, talvez seis passos estavam entre ele e aquele corpo pálido, vestido de branco e manchado de vermelho. – Candice... – Sua resposta foi o silencio. O corpo não se moveu, aquele não era seu nome, afinal. – Olha, Candy. Nós precisamos conversar. Você não pode sumir por cinco dias. Eu estava preocupado! Perguntei para todos os professores e ninguém sabia onde estava, e quando fui atrás do Chase para pedir um grupo de buscas, ele me disse para te deixar em paz. Disse que eu nunca seria capaz de te entender, de te aceitar. O que está acontecendo, Candy? – Ele abaixou o rosto, fitando os próprios pés.  O coração batia tão rápido, os olhos estavam cheios de lágrimas que com muito custo ele mantinha sob controle. – Eu senti sua falta, meu amor. – Sussurrou lentamente.
Algo se moveu dentro de Charlotte. Algo pequeno, doce e gentil. Uma voz suave que chamou pelo rapaz, uma voz que implorou o nome dele. Mas a voz de Charlotte, dentro de si mesma, era mais forte e o que foi libertado, voltou a trancar-se num lugar muito profundo. A ruiva respirou fundo, mordendo o lábio inferior lentamente. – Sabe, Aaron. – Ela começou, muito devagar. A voz era indiferente, mas bela, aveludada. Havia certa sensualidade mortal escondida sob camadas de gelo. – Você precisa entender algumas coisas sobre mim. Aliás, algumas coisas sobre nós. – A ultima palavra fez Aaron levantar a cabeça no exato momento em que Charlotte virou o corpo e só então o rapaz entendeu que aquela não era sua namorada.
Seus pés estavam descalçados, meio machucados pela floresta, com lama colorindo a pele branca até a altura dos tornozelos. O vestido branco de mangas longas estava tingido de vermelho-escuro, manchado de sangue seco na altura dos joelhos e abdômen. Mas o tom de vermelho nos braços, próximo aos pulsos, era mais vivo. Um vermelho forte onde o tecido estava molhado, grudado a pele. A faca girava habilidosamente entre os dedos, como se estivesse nascido ali, como se aquele fosse seu lugar natural.
Mas foi no rosto, aquele belo rosto que um dia tanto amou, que Aaron encontrou o que mais temia. Os lábios mostravam um sorriso lindo, tão lindo que seria possível se apaixonar apenas lhe olhando, mas esse sorriso era frio. Em seu rosto havia sangue, como há no chocolate no rosto de crianças pequenas. Os olhos, normalmente de um azul claro e celeste, estavam diferentes. Desiguais! Um de seus olhos exibia um verde profundo e outro era azul, de um azul tempestuoso. Mas ambos eram perigosos, mostravam uma fúria contida.
Todos os sinais de existência de Candice estavam lá. A aliança brilhando no dedo anelar da mão direita e sob ela, um anel mais fino com uma pedra roxa. O colar com pingente de cupcake estava ali, no lugar que ele tinha colocado uma mês antes. As unhas longas pintadas de pink, com pequenas flores brancas como decoração... Todos os sinais estavam lá, mas Candice não.
Charlotte deu um passo lento para frente e embora todos os sentidos de Aaron lhe mandassem correr, ele não se moveu. – Candice. – Ele sussurrou numa esperança vã de ver os olhos dela voltando ao normal. – Gêmea errada. – Charlie deu outro passo para frente. – Sinceramente, nessa altura do campeonato, eu achei que você já tinha notado que era eu. – Sussurrou, revirando os olhos, claramente entediada.
Depois de um longo momento, Aaron finalmente reuniu toda a coragem necessária e deu um passo para frente, puxando a mão direita da garota gentilmente. – Isso é dela, não seu. – Murmurou, sentindo novamente os olhos cheios de lágrimas. Onde estaria Candice?
Charlotte puxou a mão, livrando-se do contato dele brutamente. – Você não entende. – Por um momento, a voz dela pareceu doce e quase frágil. Por um momento, se parecia com a voz de Candice. Ela se virou, voltando para perto da arvore, passando os dedos lentamente por cada cruz que tinha entalhado ali. A verdade era que ela também não entendia e isso fazia com que se sentisse mal e estranha, mas Aaron entendia. Depois de alguns momentos no qual o silencio pareceu se estender por toda floresta, Aaron finalmente entendeu.
Compreendeu que a mente da Candice era uma bagunça, tanto quanto a de Charlotte. Compreendeu que eram uma só, mas que nenhuma das ‘duas’ tinha o conhecimento disso. Precisava entender como aquilo funcionava, precisava fazer algo, mas antes... Antes tinha que trazer sua amada de volta.
Assim, ele caminhou para perto dela e respirou fundo. – Candice. – Chamou novamente, e o corpo a sua frente apenas encostou a testa na madeira áspera, suspirando. – Eu sei que você está me ouvindo, Candy. – Murmurou, passando os braços ao redor da cintura da garota, colando seu tórax as costas dele. A primeira reação de Charlotte seria enfiar a faca no pulso do garoto, mas ela não o fez. Uma batalha era travada dentro de si mesma. Candice queria o controle, queria voltar e estar com Aaron. Charlotte precisava continuar ali, precisava terminar o que começou.
Um ruído lento encheu o lugar quando a faca foi cravada na arvore. O poder da ruiva estava saindo do controle, lutando para manter uma linha aceitável de realidade entre as duas. Pela primeira vez, e provavelmente pela ultima, Aaron ficou preso na mesma ilusão que sua namorada estava desde o nascimento, pela primeira vez ele viu e entendeu como era o mundo de Candice.
“ Candice estava com a cabeça encostada na arvore, os olhos azuis como um lago calmo. Os braços de Aaron ao redor de sua cintura, a sensação do corpo protetor dele contra o seu. Alguns metros a sua frente havia uma figura exatamente igual a Candice, exceto pelos olhos. Olhos multicoloridos e tempestuosos. Aquela era Charlotte e essa mesma Charlotte deu um passo para frente, colocando a mão sobre a de Candy, que estava apoiada na arvore. – Irmã. Minha pequena e doce irmã. Você precisa vir comigo, Candy. Eu preciso terminar isso, você sabe que preciso. Eles machucaram a todos nós, irmã. Eu preciso fazer isso. – Sua voz era tão doce quando falava com a irmã. Muito diferente da louca que tinha falado com Aaron.  
Os olhos de Charlotte encontraram com o do rapaz e ela pareceu rosnar, exibindo os dentes pontudos e artificialmente afiados. – Preciso ficar com ele, Charlie. Eu não posso ir contigo, irmã. Já faz cinco dias que nós saímos. Eu preciso ficar com ele, não posso deixa-lo sozinho. Você sabe que ele corre perigo. – A mão livre de Candice passava sobre as mãos ao amado enquanto falava. Aaron observava a cena, pasmo com a complexidade do poder da ruiva, pasmo com as dimensões que aquilo tomava e verdadeiramente tocado por finalmente poder entender o quanto aquilo afetava a vida da instrutora.
Charlie esticou a mão, tirando delicadamente uma mexa do cabelo vermelho que cairá sobre os olhos azuis daquela que era doce. – Eu sei, minha rainha, eu sei. Mas só falta um, Candice. Só um e eu terei terminado, só mais um. Você sabe que eu preciso fazer isso e sabe que, de certa forma, isso ajudará a manter esse aí seguro. – Murmurou, dirigindo um olhar gélido ao rapaz que ainda abraçava aquela que amava. E foi essa, foi sua amada que afirmou com a cabeça. Meio convencida, meio derrotada.
Candice soltou as mãos de Aaron de sua cintura e se virou lentamente, ficando de frente para o rapaz. Passou os braços em volta do pescoço dele, sorrindo como um anjo. Sorrindo como ele se lembrava, como da primeira vez em que viu ela. – Meu amor... Dois dias, está bem? Só mais dois dias e eu estarei de volte. Encontre-me no penhasco, no nascer do sol do terceiro dia. Eu vou estar te esperando, prometo. – Murmurou e antes que ele pudesse lhe responder, ela o beijou. Candice beijou o rapaz com todo seu amor. E Aaron, imerso na ilusão tanto quanto sua namorada, retribuiu o beijo com lágrimas gélidas deslizando sobre as bochechas quentes. Seus lábios se separam lentamente e Candice se afastou do amado pra chegar perto da irmã. Beijou o rosto de Charlie demoradamente e se afastou, sumindo na escuridão da floresta. ”
Aaron era incapaz de dizer se tudo aquilo aconteceu de verdade ou se era apenas uma ilusão. O fato era que Charlotte estava ali, parada a sua frente. Os dedos estavam firmes ao redor do cabo da faca, os olhos disformes que encaravam o rapaz eram frios e assassinos. – Agradeça a tudo que conhece por ela te amar tanto. Essa é a única coisa que te mantém vivo. – Sussurrou, tirando a faca da madeira e virando-se. Da mesma forma que Candice, na ilusão, a ruiva caminhou lentamente e sumiu na escuridão da floresta.
E o rapaz? Ele foi incapaz de continuar, incapaz de sair dali. Passou os dedos lentamente por cada cruz talhada na arvore. Então se encostou à mesma, deslizando o corpo até estar sentado no chão, abraçando os joelhos e deitando a cabeça sobre os braços cruzados. Assim, no silencio da floresta, beijado pela luz imparcial da lua, ficou pensando em Candice. Em Candice, em Charlotte, em todas as coisas que viu. Passou a noite pensando... Em Delirium.

Candice, a historia.

Candice Harris Murphy, a filha única de Stacey e Louis. A menina de ouro da família... Ou quase isso.
Toda criança, quando pequena, vê coisas que nenhum adulto consegue ver. Com a pequena Candice não era diferente. Ela tinha inúmeros amigos imaginários, passava horas brincando sozinha no enorme jardim de sua casa e preferia a companhia do que era produzido por sua mente a companhia das crianças das redondezas. Seus pais nunca desconfiaram de nada, até que, aos sete anos, Candice passou a afirmar que tinha uma irma gêmea chamada Charlotte.
Stacey e Louis estavam certos de que isso iria passar logo, afinal, sua filha era uma criança saudável e apesar de ser um pouco tímida, era amável e tinha boas notas e bom despenho escolar. Mas os anos passaram e embora alguns amigos imaginários tenham se afastado, a imagem de Charlie permanecia junto a ruiva. Candice passava horas sentada sob o carvalho, o caderno de desenho sempre firme enquanto rabiscava e a voz sempre melodiosa, respondendo a alguém que só ela ouvia.
Numa tarde, com a garota já tinha aproximadamente quinze anos, seus pais resolveram entrar em seu quarto enquanto a menina estava na escola. Vasculharam cada canto do cômodo e ao abrirem o closet, encontraram a pior cena de suas vidas. Nas paredes haviam desenhos, terrivelmente realistas, de pessoas mortas das formas mais violetas e brutais possíveis. Os desenhos mostravam pessoas decapitadas, enforcadas, desmembradas e por aí a fora.
Ao chegar em casa, diante da família em pânico, Candice tentou explicar aos pais que ela não fizera nada daquilo. Que eram os desenhos que Charlotte lhe pedia para fazer, que estavam ali porque sua irmã havia colocado lá... Mas explicação alguma livrou a doce garota de seu terrível destino. Louis convenceu a esposa que era perigoso manter a filha em casa e assim a ruiva foi mandada a um manicômio, onde o inferno de fato começou.
Por não ser considerada violenta, Candy podia transitar livremente pelo hospital. Ela tinha um bom relacionamento com os outros internos, era paciente e até ajudava nas aulas de artes do lugar. Mas isso não impediu a garota de desenvolver raiva e repulsão por seus pais, afinal, Candice não havia feito nada e ela simplesmente não entendia porque todos ignoravam Charlie quando era obvio que a irmã estava ali, bem ao lado dela, o tempo todo.
Grande parte dos enfermeiros e responsáveis pelo hospital gostavam da menina, embora estivessem todos convencidos que ela era realmente louca, havia algo de muito especial nela. Candice compreendia facilmente os acessos de raiva dos outros pacientes e ajudava a controlar aquilo quase como se estivesse dentro da mente das outras pessoas. Também possuía uma facilidade incrível para aprender diversas coisas, como idiomas e musica.
De um modo geral, as coisas caminhavam bem. Algumas pessoas até fingiam ver Charlotte para confortar a ruiva. Mas havia uma única pessoa que não via Candice como os outros. Havia um homem que desejava aquela pequena ruiva de forma brutal e esse foi o inicio da explosão mais grave da vida da menina.
Numa noite, Scott entrou no quarto da menina enquanto a mesma dormia e tentou toma-la a força. Num estalino surdo, algo despertou dentro da garota, uma parte delicada de seu poder, algo que saiu completamente de seu controle...
Quando o sol nasceu, Scott estava morto. Seu corpo estava sobre a cama de Candice, as pernas torcidas num ângulo doloroso, a garganta arranhada até que as veias se rompessem, o corpo cheio de marcas roxas e sob as unhas, grandes quantidades de pele e sangue. O vigia do hospital estava em posição fetal, chorando sem conseguir formar uma única frase coerente e Candy havia desaparecido.
A policia foi avisada do ocorrido, mas já era tarde demais para a ruiva ou sua família. Em meio ao frenesi assassino causado pelo descontrole de seu poder, Candice dirigiu-se a sua antiga casa e esfaqueou os pais de forma brutal, até a morte, para depois desmembra-los.
Felizmente, alguém observava Candice há tempos e embora não tenha conseguido agir durante o surto, chegará antes da policia.
Quando Sebastian atravessou os portões da casa, encontrou a ruiva cavando um grande buraco sob o carvalho do quintal. Os corpos desmembrados estavam jogados de lado numa confusão de braços, pernas e cabeças. Os olhos azuis dela, brilhando pela insanidade, encontraram os olhos do maior. – Se você contar a alguém, ela vai atrás de ti. – Sussurrou. Sebastian limitou-se a afirmar com a cabeça. – Está tudo bem, pequena. Eu vim ajuda-la. – Embora não devesse confiar nos outros, a menina continuou cavando. – Candice. – A voz dele a fez parar sua tarefa. – O que aconteceu? – Aquela era uma pergunta  importante. Ele sabia o que tinha acontecido, mas precisava saber como a ruiva via tudo aquilo.
Candice suspirou, enfiou a pá no chão e pegou dois braços, jogando-os no grande buraco. – Não é culpa dela, Charlie só queria me proteger. – A menina não parecia perturbada com o que acontecia, não parecia se importar com os corpos. – Sabe, eles foram malvados com a gente, nos mandaram embora sem motivo. Se tivessem deixado a gente viver aqui, Scott não teria feito aquilo e estaria tudo bem agora. – Explicou, enquanto ia colocando o resto dos corpos no buraco. Quando finalmente colocou todas as partes, ela pegou a pá novamente e fitou Sebastian por um longo momento. – Charlotte é uma boa menina, ela só estava cuidando de mim. E agora eu preciso cuidar dela, preciso limpar tudo. – A menina sorriu e seu sorriso era doce e encantador como o de uma criança; e assim ela voltou ao trabalho, enchendo o buraco de terra.
Naquele momento Sebastian entendeu o quanto o poder da garota era forte e o quanto o mesmo era capaz de mexer com a noção da realidade que a pequena Candice tinha... Com certo esforço, o maior convenceu a menina a ir com ele e assim a ruiva na fundação meyers. Logicamente, nem tudo eram flores. Embora tivesse o temperamento amigável na maior parte do tempo, Candy costumava se descontrolar quando se sentia ameaçada e isso era perigoso.
Muito tempo e esforço foi investido no treinamento da menina. Anos se estenderam a exaustão para que um maior controle fosse obtido. Felizmente, Candice teve sucesso em muitos pontos de seu treinamento. Tornou-se uma boa lutadora, embora passasse dos limites em certos momentos. Entretanto, mesmo com toda sua evolução, nunca foi possível convencer a garota que Charlie não existia, que era apenas fruto de seu poder, uma vez que só tocar no assunto provocava uma crise.
Devido a seu temperamento e aos mutantes novos que chegavam as pencas na fundação, Candice foi escolhida para dar aula de tortura e métodos de persuasão. Afinal, a garota passou boa parte da vida ali, se tornando uma mutante com dons incríveis e provando que existe muito por trás de um doce sorriso. Hoje em dia, felizmente, Candy consegue controlar melhor suas crises de raiva, mas as vezes, Charlotte toma o controle e nesses momentos...

Bom, nesses momentos eu agradeço por não ser um inimigo.

Liesel

Domingo, 09 de Janeiro de 1905.
Era uma manhã fria quando Liesel, como outras cem mil pessoas, saiu de casa. Caminhavam pacificamente em rumo ao palácio de inverno de São Petersburgo, residência do Czar Nicolau II, que havia afundado a Rússia numa crise sem precedentes na historia.
Toda a população estava insatisfeita. Havia fome, desemprego e morte por todos os lados. Até mesmo a família Hans, que era de uma classe econômica confortável, estava ali, indignada com tudo que acontecia a seu povo e país. Liesel não concordava com os ícones santos da igreja ortodoxa que eram exibidos no meio da manifestação, muito menos as pessoas que passavam na rua e lhe faziam o sinal da cruz, mas entendia que aquilo mostrava o quanto eram pacíficos.
Seus pais, na linha de frente da manifestação, carregavam orgulhosos a petição por melhoras com 130 mil assinaturas, a maioria tendo sido conseguida por eles próprios, Elizabeth e Yuri Hans. Sua filha ia bem mais atrás, perdida no meio dos pensamentos de ódio que nutria pelo czar. Tudo que ruim que vinha acontecendo na vida da loira era culpa daquele monstruoso imperador.
Ao longe, já era possível ver a estrutura do palácio e assim que se aproximaram do mesmo, os primeiros tiros foram ouvidos. Foi tudo rápido demais, um turbilhão de sons agudos, gente correndo, vozes desesperadas gritando e o mundo sendo tingido de vermelho. Embora tentasse lutar para chegar até a linha de frente, chegar até seus pais, a multidão puxava a menina em todas as direções, afastando-a ainda mais de seu objetivo.
Passado duas horas, a multidão já havia de dispersado. Liesel voltou para casa, mas encontrou o imóvel no mesmo estado em que estava quando saiu. Completamente vazio. Foi assim, correndo e com o coração na boca, que ela voltou para a pior cena de sua vida. Os corpos ainda estavam caídos aos montes na rua, alguns pisoteados ao ponto de não serem reconhecíveis. Os guardas ainda estavam lá, com as armas em mãos, mas não fizeram nada diante do horror da loira que, em passos lentos, começou a procurar rostos conhecidos em meio aos mortos e infelizmente, encontrou.
Seu pai estava deitado no meio da rua, um ferimento grande no pescoço, o braço esmagado como se um bilhão de pessoas tivesse pisado no mesmo. Já Elizabeth, sua amada mãe, estava sentada próxima a uma arvore, com um ferimento no tórax que sangrava muito... Ao se aproximar, Liesel percebeu que a mãe ainda respirava, e tentou, em vão, levantar a mulher. – Não, minha pequena, não... Pegue isso e entregue ao seu padrinho, ele saberá o que fazer. Vá logo, antes que eles mudem de ideia e lhe matem também! – A voz da mulher era muito baixa, rouca. E juntando todas suas ultimas forças, a morena colocou a petição, manchada de sangue inocente, nos braços da filha.
Desolada, a menina só soube chorar, abraçada ao corpo já sem vida de sua mãe. E não conseguiu dizer quantas horas se passaram até que chegasse a equipe para retirar os corpos do lugar, forçando Liesel a se separar dos pais e voltar para a casa com uma petição inútil e um buraco enorme onde deveria estar seu coração. Buraco esse que foi preenchido pelo ódio que alimentava do Czar. Naquele dia, Liesel jurou vingança a qualquer preço.



Quarta-feira, 14 de março de 1917.
Doze anos se passaram desde que Liesel perdeu toda sua humanidade e passou a ter dentro de si apenas a raiva, e a vingança passou a ser seu único objetivo. Ela faria Nicolau II perder tudo, começando pelo reinado.
Sozinha no mundo, a menina passou a buscar meios para conseguir sua vingança. Encontrou, por acaso, um homem que lhe ofereceu ajuda para sustentar-se e prometeu lhe ensinar meios de conseguir o que queria. Para isso, ela só precisava casar com ele. Ivan Krolling  era um homem gentil, de feições simples, embora não feias. Ao final, casar-se com ele não foi um grande sacrifício depois de tudo que lhe foi ensinado.
Mas Liesel era uma garota bonita, alias, era uma garota linda. Cheia de desejos pecaminosos, que despertaram o interesse de muitos homens, pobres e ricos, embora apenas os ricos acabassem em sua cama... Para sua felicidade, ou infelicidade, um certo demônio também ficou interessado naquela beleza e no instinto natural e perverso.
Naquela noite, quando as estrelas apareceram, mas a lua não foi vista, Liesel saiu e caminhou por muito tempo, enfiando-se na mata até encontrar uma clareira de tamanho considerável. Ali, longe de todos os olhos humanos, despida completamente, a loira traçou um pentagrama no chão e acendeu treze velas negras. Em pé ao centro do pentagrama, com o livro em mãos, passou a entoar lentamente as palavras que lhe foram ensinadas, invocando aquele que deveria conceder sua vingança. E ele veio, mas não sozinho.
A sua esquerda formou-se a figura de Alastor, o demônio da vingança e do crime. E tão logo a presença dele fez-se presente, surgiu outra, muito mais forte e imponente. Era Asmodeus, o demônio da luxuria, um dos sete príncipes. – NÃO OUSE! – Ele murmurou, a voz poderosa. – Não fale com ela. Ela é minha! Não me importa que ela tenha te invocado, pois posso realizar os desejos de Liesel muito melhor do que você jamais poderia. – A figura humana fez um meio circulo, caminhando lentamente em direção ao outro. – Eu a observei durante algum tempo e ela será minha. – Prometeu.
Diante das ameaças do príncipe, Alastor retirou-se tão subitamente quanto veio e Asmodeus virou-se para Liesel que permanecia imóvel no centro do pentagrama. – Liesel, Liesel, Liesel. – A voz dele era sensual e a loira quase era capaz de esquecer o motivo de estar ali. – Invocando um demônio menor quando és, obviamente, minha? Achou mesmo que eu iria perder sua alma? – Enquanto falava, ele caminhava em direção a ela. Os passos lentos, o corpo tornando-se visível a medida que se aproximava.
Liesel não era capaz de acreditar em como aquele príncipe era bonito. Era apenas um disfarce, ela sabia, mas era lindo. Tinha os músculos todos bem definidos, o queixo bem desenhado e uma barba por fazer, exatamente da forma que mais lhe atraia e ela perdeu-se nos olhos negros ele. Ali, via-se cenas de sexo e violência mutuamente e a loira encarava-o sem medo algum. – Diga-me o que quer. – Ele murmurou, o corpo a centímetros do dela. – Vingança. – A voz dela era firme. – Quero que czar Nicollau pague pelo que fez. Que perca o reinado e a família, como aconteceu comigo. – Os olhos azuis dela faiscavam com a raiva.
Asmodeus riu. Uma gargalhada genuína. Segurou o queixo da menina, olhando-a de cima a baixo, analisando seu perfeito corpo nu. – Não pede nada que eu não possa fazer, é verdade. Mas tudo tem um preço... Eu vou realizar seu primeiro desejo e em troca, será minha escrava. Se fizer isso bem, eu lhe darei o segundo desejo. – A voz dele não admitia discussões e Liesel apenas afirmou com a cabeça, sorrindo de lado. – Me parece um ótimo acordo. – Murmurou. Era claro que lidar com demônios para especialmente perigoso e que ela, provavelmente, não sabia ao certo onde estava se metendo, mas aquilo não tinha a menor importância. Liesel iria ao fim do mundo por sua vingança.
Para selar o acordo, o príncipe beijou a russa com uma veracidade que ela desconhecia e lhe possuiu ali mesmo de forma tão violenta que, horas depois, Liesel ainda estava deitada no chão gélido, nua. O sol começava a tingir o mundo de dourado quando ela se sentou e observou o próprio corpo cheio de manchas roxas, marcas profundas de mordidas e inteiro dolorido. Aquela havia sido a noite a primeira de muitas noites na qual, em êxtase nos braços de Asmodeus, a loira se permitiu ser consumida e praticamente violentada.
Como prometido pelo demônio, em 15 de março, o dia seguinte ao encontro com Liesel, czar Nicollau II abdicou de seu trono e dali em diante, seu destino foi selado. A loira se tornou, para o resto da eternidade, a escrava mais devota do príncipe.
Quarta-feira, 17 de Julho de 1918.
Pelos próximos 16 longos meses, Liesel foi a escrava de Asmodeus. Não apenas no sentindo sexual, ela fazia milhares de coisas para o demônio e as vezes, a mando dele, até seguia ordens de demônios de patentes mais baixas.
Ainda sim, o príncipe consumiu a loira até a ultima gota de sua essência, pois ela era diferente. Ela era inteiramente perversa, de um jeito que poucas vezes é encontrado e que por muitos é cobiçado. Liesel era má do jeito que poucos humanos são capazes, uma maquina de sexo e morte.
Aos 22 anos, com a saúde frágil, ela recebeu a noticia que czar Nicollau estava morto, que havia sido executado junto com toda sua família e esse dia, no mesmo dia da morte de seu maior inimigo, Liesel partirá também. Aquela foi a ultima vez que ela virá Asmodeus. O príncipe apareceu para lhe tomar pela ultima vez, fazendo com que a garota se tornasse uma succubus.
Atualmente
Liesel acreditou que sua morte humana significasse liberdade, mas estava errada. Embora raramente seja convidada a cama de Asmodeus, ela ainda lhe é uma serva fiel e devotada. Lie segue as ordens do principe em parte por obrigação e em parte pela gratidão da vingança que lhe foi concedida.
Ao longo de varios anos servindo Asmodeus, a succubus se tornou uma das preferidas do principe, sendo praticamente seu braço direito. Naturalmente sensual e cruel, Liesel vaga pelo mundo todo atendendo os pedidos de seu Mestre.